Abelardo, o nosso menino do Recife

Crédito: Tatiana Sotero / DP / D.A Press

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Andávamos desconfiadas pela Rua do Sossego numa tarde perdida dos últimos 10 anos. Eu e minhas duas amigas, Renata Maia e Renata Castro, tínhamos a missão de tocar na casa de número 307 e convencer o artista plástico Abelardo da Hora a nos receber e aceitar o convite de ser biografado, em vídeo, no nosso projeto de conclusão de curso de jornalismo. De pronto, o senhor de camisa amarela de linho, de mangas compridas, boné e bermuda brancas nos abriu um sorriso. Disse que estava acostumado a receber alunos na sua casa e que não tinha problema algum em abrir a sua vida para as três estudantes em início de carreira. Do sim ao projeto final, foram cerca de seis meses. Era 2004, mesmo ano em que ele completava seus 80 anos. Tínhamos uma boa pauta, um ótimo gancho e um personagem cheio de histórias para enriquecer o nosso trabalho.

Abelardo e Margarida da Hora. Crédito: Tatiana Sotero / DP / D.A Press

Abelardo e Margarida da Hora. Crédito: Tatiana Sotero / DP / D.A Press

Perdi as contas de quantas vezes atravessamos a rua do Sossego rumo à famosa casa amarela. Tantas e tantas vezes que passássemos por lá, éramos recebidos pelo sempre simpático e sorridente Abelardo com a sua companheira Margarida. Ela contava orgulhosa, dia a dia, como foi o primeiro encontro com ele. De tanto ouvirmos, já sabíamos complementar trechos das histórias, enquanto o nosso entrevistado se arrumava para sair para as filmagens ou compartilhar um pouco da sua vida conosco. Apesar da repetição das suas recordações, os olhos de Margarida sempre brilhavam quando falava do seu Abelardo. “Em todo este tempo, ele nunca mudou nas coisas que me fizeram me aproximar dele”, contou, em nosso vídeo, uma ainda apaixonada mulher pelo seu marido, após 56 anos de convivência.

Crédito: Tatiana Sotero / DP / D.A Press

Renata Maia, Renata Castrio, Abelardo da Hora, Margarida e Tatiana Sotero. Crédito: Arquivo pessoal / Divulgação

Nas nossas pesquisas e estudos, conhecemos alguns dos irmãos do artista plástico. Todos falavam do menino levado que era em sua infância e adolescência. Bianor da Hora, o primogênito da família, contou que ele chegou até a fugir de casa. Claudionor Germano lembrou da mania do irmão de falar assoviando. “Às vezes falava um assunto sério e ele continuava a assoviar”. Até hoje, se fechar os olhos, consigo ouvir os assovios de Abelardo enquanto esculpia para a nossa equipe filmar ou pensava uma resposta entre uma pergunta e outra.

Crédito: Tatiana Sotero / DP / D.A Press

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Os filhos com quem conversamos foram unânimes em destacar que ele era um paizão e que cresceram num lar especial, o mesmo que visitamos na Rua da Soledade. Lá, num corredor estreito, cheio de esculturas, as crianças brincavam e colocavam nomes nas obras de arte do pai. A maioria mulheres de curvas volumosas, além dos tradicionais “Meninos do Recife”. Estes eram bonecos magros, com seus brinquedos artesanais, mostrando a fragilidade da gente que Abelardo viu pelas ruas. Nestas peças expostas em sua casa, uma tradução do que era a sua obra: amor e solidariedade. “Solidariedade ao povo sofrido da minha terra e amor pelas mulheres, que são a coisa mais linda desta vida”, repetia sem cansar.

O corredor apertado da famosa casa amarela guardava as esculturas de Abelardo. Crédito: Tatiana Sotero / DP / D.A Press

O corredor apertado da famosa casa amarela guardava as esculturas de Abelardo. Crédito: Tatiana Sotero / DP / D.A Press

Foi com uma de suas obras que resolvemos batizar o nosso trabalho: “Abelardo, um menino do Recife”.  Porque encontramos nelas, um retrato de seu autor. Abelardo era um menino aos 80 anos de idade. Era assim que se definia. “Não tenho vontade de parar de trabalhar… Me sinto um menino. Me sinto como uma criança. Tenho pressão baixa e fogo alto até hoje”, brincou, sempre bem humorado em uma de nossas gravações.

Crédito: Tatiana Sotero / DP / D.A Press

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Em todo o tempo de trabalho, a única vez que Abelardo guardou o seu peculiar sorriso foi quando pedimos para que ele fizesse um autorretrato: “Nunca fiz!”, disse sem rodeios. Sem querer perder a abertura que queríamos para nosso vídeo, não abri mão da ideia e pedi para que fizesse um desenho, no mesmo traçado dos seus “meninos”, e colocasse o chapéu que virou a sua marca registrada. Sem responder a minha pergunta, virou-se, pegou o papel, assoviou e começou a tracejar. Fizemos sinal para o cinegrafista ficar a postos. E, em pouco mais de cinco minutos, estava lá o desenho pronto: o “nosso” Menino do Recife. Foi a “nossa” obra de arte, a “nossa” relíquia, que emolduramos e conservamos até hoje. Nela, a lembrança da nossa história, do nosso esforço em iniciar a carreira e o carinho que ficou por um homem que encheu de arte a nossa cidade e enriqueceu a cultura do nosso estado.

Dedico este texto à familia da Hora, às minhas amigas e companheiras, Renata Castro e Renata Maia, pela parceria, amizade e cumplicidade, e ao professor Cláudio Bezerra, quem nos conduziu nesta gostosa caminhada rumo ao primeiro diploma.

Confira clipe com os melhores momentos do vídeo Abelardo, um menino do Recife:

Author: Tatiana Sotero

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