Alcir Lacerda: o legado além do homem

Um verdadeiro artista não morre enquanto seu legado for mantido vivo. Entre lembranças, álbuns, recortes, certificados, câmeras usadas, negativos de filmes fotográficos e papéis envelhecidos, pode-se dizer que Alcir Lacerda permanece entre sua família, como se a qualquer momento fosse cruzar a porta de entrada do novo apartamento, que não chegou a habitar, para chamar sua esposa, Conceição Lacerda, de volta ao antigo casarão no bairro das Graças, onde viveu até seus últimos dias. É como se a qualquer momento, ele pudesse apontar as fotografias tiradas por seus pupilos, dando-lhes novas dicas, antes sempre engatilhadas na ponta da língua.

Falecido no dia 10 de setembro de 2012, Alcir Lacerda deixou para trás cinco filhos, onze netos e sete bisnetos. Será homenageado neste carnaval, ao lado de Naná Vasconcelos, após construir, durante seus 84 anos, um legado que transcende a própria morte.

Alcir Lacerda – Crédito: Inês Campelo DP/D.A Press

Exímio fotógrafo, Alcir Lacerda capturou instantes eternos de um Recife em crescimento, registrando cenas de uma época de mudanças, à qual a cidade como a conhecemos atualmente não vai jamais retornar. Cliques em preto e branco eram os seus preferidos, dando um toque documental e clássico aos seus trabalhos. Nascido em São Lourenço da Mata, Alcir não chegou a ver sua cidade natal tornar-se sede de um grande evento esportivo, como será na Copa do Mundo de 2014. Mas ele viu e, principalmente, pressentiu o progresso. Registrou Pernambuco ainda em desenvolvimento, fotografando cenas que lhe pareceram – e foram, de fato – valiosas ao longo da história local, de Serrita a Tamandaré. Seus filhos e amigos garantem que, se estivesse vivo, este seria o conselho que transmitiria às novas gerações de fotógrafos: “Registrem o Recife como se apresenta agora, porque muito em breve ele irá mudar”.

Crédito: Nando Chiappetta/DP/D.A Press

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A família de Alcir Lacerda – Crédito: Nando Chiappetta/DP/D.A Press

Sua relação com o carnaval ultrapassava a de um folião comum. Além de levar a esposa e toda a família aos bailes e festas de Momo, saindo às ruas e tirando do armário as fantasias e adereços mais alegres, Alcir foi um dos fundadores do Galo da Madrugada. Disto, poucos sabiam. Mas o documento está em mãos de seus filhos, como prova, com a assinatura de Enéas Freire e datado de 1978, ano de início da agremiação. O papel envelhecido – a princípio, tido como pouco importante – foi encontrado entre seus arquivos e agora é mantido com todo o cuidado pelos descendentes do fotógrafo, também fãs do carnaval.

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O certificado de fundador do Galo – Crédito: Nando Chiappetta/DP/D.A Press

Alcir Lacerda não chegou a se mudar para o endereço onde hoje vive sua esposa, Conceição Lacerda, conhecida como Ceça. Envelheceu dentro das paredes de sua casa na Rua do Cupim, nas Graças, e cumpriu a promessa que fez aos filhos de que enquanto vivesse, não sairia de lá. Apesar disso, a nova moradia de sua viúva parece pronta a recebê-lo a qualquer momento, com todos os seus arquivos e objetos pessoais conservados “à espera” do dono. Suas primeiras câmeras, as primeiras fotos, os álbuns antigos, os documentos… cada item é considerado um tesouro viajante no tempo. Sua filha, Betty Lacerda, é a principal responsável pela manutenção e organização dos objetos – morando, inclusive, a apenas alguns andares de distância da mãe.

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Betty Lacerda ao lado das fotografias da família – Crédito: Nando Chiappetta/DP/D.A Press

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“Ele foi um grande fotógrafo, ninguém pode negar”, diz Betty, “mas, na intimidade, também era um paizão!”. Ela conta que, durante a carreira de Alcir, muitas vezes ele fotografou eventos sociais, dos quais sempre voltava com os bolsos cheios de docinhos para a esposa e os filhos. “Nós o esperávamos o quanto podíamos, mas quando o sono nos vencia, sabíamos que no dia seguinte os docinhos estariam ainda no bolso dos seus ternos”, conta Betty.

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Betty Lacerda, com os arquivos do pai – Crédito: Nando Chiappetta/DP/D.A Press

E a relação afetuosa na intimidade passou às gerações seguintes. Em sua casa de praia, em Tamandaré, Alcir costumava deitar-se na rede, cercado pelos netos e bisnetos, contando histórias fatasiosas, que ele mesmo inventava. Em âmbitos mais sérios, chegou a transmitir a paixão pela fotografia ao seu bisneto, Thiago Bianchi, que hoje segue os caminhos do bisavô. “Meu interesse começou logo que ganhei minha primeira câmera, aos dez anos”, fala Thiago, “e agora, às vésperas do vestibular, sei que vou seguir a área da comunicação”. Sua admiração por Alcir é tanta e tão eterna quanto os laços de sangue que os unem.

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Betty Lacerda e Thiago Bianchi – Crédito: Nando Chiappetta/DP/D.A Press

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Fora de casa, Alcir também conquistou respeito e carinho de fotógrafos mais novos, sempre atentos aos seus conselhos e brincadeiras. Matheus Sá, que hoje se destaca nas produções pernambucanas de imagens, recebeu dicas de Alcir desde o início da carreira, quando revelou seus primeiros filmes em preto e branco na ACE Filmes, que funcionava sob comando de Alcir, no centro da cidade. Matheus se emociona ao falar do mestre, com quem convivia desde 1997. “Alcir não fazia diferença de idade, classe, cor ou posição social”, conta Matheus, “ele tratava a todos com igualdade”.

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Betty Lacerda e Matheus Sá – Crédito: Nando Chiappetta/DP/D.A Press

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Agora, seus familiares, admiradores e amigos esperam para ver as imagens de Alcir Lacerda estampando o carnaval do Recife. A merecida homenagem veio para aliviar o luto e acomodar a saudade em um lugar mais sereno, entre a gratidão pelos anos de convivência e o reconhecimento pela sua obra. Vazio à parte – preenchido no lar de Ceça Lacerda, a viúva, por paredes repletas de retratos e cômodos cheios de lembranças ainda embrulhadas – o carnaval bate à porta em ritmo frenético, acelerando a cicatrização da perda. “Estamos muito felizes com esta homenagem”, conta Betty, “e queremos que todos os recifenses saiam às ruas para brincar o carnaval, porque é o que o meu pai faria”. É o que Alcir Lacerda fez por muitos anos, na verdade. E aquilo que foi feito, por suas mãos e por suas lentes, dispensa qualquer justificativa e o coloca como mito no hall dos grandes artistas pernambucanos.

Leia também o especial com Naná Vasconcelos, outro homenageado do carnaval 2013:

Naná Vasconcelos: o homem por trás do mito

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