Giro Blog

entrevista – guilherme

 

  1. Como surgiu a iniciativa do projeto Recife 500 anos?

Originalmente, a ideia de utilizar a data em que o Recife faz 500 anos como ideia mobilizadora para um projeto de longo prazo surgiu em 2011 durante o evento rXa, um intercâmbio de conhecimento entre as cidades do Recife e de Amsterdam. Na ocasião, representantes de organizações daqui do Recife como: UFPE, Fundaj, CAU, IAB, IPHAN, Porto Digital, Prefeitura do Recife e Governo de Pernambuco interagiram com especialistas holandeses para debater desafios comuns às duas cidades e buscar novas proposições para o futuro. Daí surgiu a metáfora da “árvore das águas” que propôs um olhar para o Recife a partir de seus diversos corpos d’água. No ano de 2012 o Observatório do Recife e as organizações que o apoiam realizaram o projeto O Recife que Precisamos, com uma proposição de cinco linhas de ação orientadas ao futuro da cidade. Neste projeto também foi feito referência à data da comemoração dos 500 Anos do Recife. Durante o pleito eleitoral municipal de 2012 diferentes lideranças provocaram os candidatos a prefeito sobre a criação de uma estratégia de futuro para o Recife e a necessidade de assumir compromissos com projetos de longo prazo. Após o resultado do pleito eleitoral, o então prefeito eleito Geraldo Júlio voltou a debater o tema do longo prazo com as lideranças que haviam levantado esta bandeira e propôs que a construção da estratégia da cidade fosse realizada com o apoio do poder público municipal, mas liderado pela sociedade. Durante o ano de 2013, a Prefeitura do Recife trabalhou na construção de um chamamento público para que organizações da sociedade civil apresentassem propostas para a condução do processo de construção colaborativa da estratégia de futuro da cidade. Como resultado deste chamamento, foi celebrado em 2014 o contrato de gestão com o Núcleo de Gestão do Porto Digital que tem no seu escopo a realização do Recife 500 Anos.

  1. Como “criar” uma cidade ideal em menos de 25 anos, considerando fatores importantes como educação, saúde, transporte, moradia, acessibilidade, etc?

Estamos tratando de uma cidade, um organismo vivo que nunca estará pronto e acabado, mas em permanente evolução. Uma estratégia de futuro parte de um ideal de cidade, mas não se propõe a construir uma cidade ideal. Ter uma estratégia de cidade é compartilhar uma visão de futuro construída coletivamente sobre temas convergentes e, a partir desta visão, buscar o engajamento de todos os responsáveis na implementação de ações, projetos, programas e políticas públicas em geral que mudem a forma como construímos o futuro da nossa cidade. A linha de ação que está sendo debatida no Recife 500 Anos neste terceiro ciclo de debates parte da proposição de REUNIR, REVIVER e REINVENTAR nossa cidade. Se conseguirmos nos manter fiéis a uma estratégia de cidade e passarmos a debater as iniciativas do presente sempre numa perspectiva de futuro, já teremos transformado a forma que fazemos cidade.

  1. Vocês adotaram alguma cidade ou projeto internacional como referência para aplicá-lo pela primeira vez no Brasil?

O objetivo é encontrar uma forma nossa de fazer cidade. Referências de experiências de sucesso em outras cidades são apenas parte das fontes de pesquisa utilizadas. Publicamos um material extenso com os indicadores do Recife comparados com outras cidades do Brasil e do Mundo. Acompanhamos sempre experiências que estão dando certo ou que têm eficácia comprovada. Contudo, o Recife 500 Anos busca propor uma estratégia construída a partir não apenas do saber estabelecido sobre cidades, mas principalmente a partir do saber estabelecido sobre a nossa cidade e do saber que emerge do processo de participação. Ter uma estratégia começa por celebrar a identidade da própria cidade.

  1. Após o lançamento da primeira versão estratégica do Plano Recife 500 anos, qual o próximo passo para dar continuidade ao projeto?

A Agência Recife para Inovação e Estratégia – ARIES foi criada com o propósito de manter viva a estratégia da nossa cidade. Sua atuação está focada em monitorar indicadores da cidade que representem os avanços propostos na estratégia, alimentar o debate de alto nível sobre a cidade e propor soluções inovadoras que contribuam para a implementação da estratégia. A ARIES e um conjunto amplo de organizações que hoje compõe a Rede Recife 500 Anos atuam com o compromisso de manter viva a cultura da visão de longo prazo para a nossa cidade, cobrando e apoiando os diversos atores responsáveis pela construção do futuro.

  1. No cenário atual, como a população pode desfrutar os resultados já obtidos?

No início o plano Recife 500 Anos pode auxiliar a população a compreender melhor temas complexos cujas soluções demandam tempo e compromisso com o longo prazo. Trata-se de um instrumento de suporte ao debate vivo sobre a cidade. É também um canal de amplificação deste debate. Além disso, a ARIES conduz projetos de experimentações urbanas inovadoras que representam o ideal de cidade apresentado no Recife 500 Anos. Já temos dois projetos em andamento que vão gerar intervenções que se propõe a criar espaços de antecipação de futuro. À medida que esses projetos forem implementados a população já poderá desfrutar. Independente da atuação específica da ARIES, a população já pode utilizar o plano Recife 500 Anos para avaliar metas e marcos de curto prazo propostos nos Caminhos Estratégicos. Nossa cidade tem avançado em temas importantes para o longo prazo e cada um já pode avaliar estes avanços no presente.

  1. Quais os maiores desafios para reunir, reviver e reinventar a cidade do Recife?

O grande desafio de uma estratégia de cidade é o engajamento. Cabe aos cidadãos tomarem para si o protagonismo da transformação da cidade. Se conseguirmos engajar a população e os mais distintos segmentos que compõem nossa cidade já teremos vencido uma etapa importante. Especificamente sobre reunir, reviver e reinventar eu destacaria o desafio de perseguir de forma estruturada e contínua a redução das desigualdades (reunir) e a forma como estas desigualdades se manifestam no território. Também é fundamental que possamos mudar a forma como vivemos a cidade, uma melhoria ampla em indicadores sociais que permita uma nova forma de vivenciarmos o Recife. Por fim, abrir a cabeça a mudanças de comportamento buscando dar forma aos nossos conflitos sem abrir mão de perseguir nossos pontos de convergência. Só assim conseguiremos reinventar nossa cidade a partir daquilo que já temos de história, cultura, economia e potencialidades.

  1. Quais as propostas para a revitalização urbana da cidade ao decorrer do trabalho?

O plano está resumido em 12 diretrizes, 3 sínteses estratégicas, 17 caminhos e 6 grandes transformações. Para compreender melhor as proposições do plano é importante o engajamento da população no conhecimento e crítica desta proposta inicial de estratégia. Em www.rec500.org.br a população pode conhecer, criticar e propor novas ideias a serem incorporadas à estratégia.

  1. Além do projeto Primeira Infância, vocês estão buscando outras políticas públicas para integrar ao planejamento estratégico? Como essas ações podem impactar no desenvolvimento urbano e social?

Como dissemos anteriormente, a ARIES tem como uma de suas linhas de atuação a criação de espaços de antecipação de futuro. Nosso propósito é seguir experimentando com políticas públicas inovadoras e baseadas em evidências de forma a contribuir com a nossa cidade. Atualmente conduzimos em parceria com a Prefeitura do Recife e a Fundação Bernard van Leer um desses experimentos urbanos que tem como tema central a Primeira Infância. A prefeitura atualmente já desenvolve mais de 600 iniciativas que impactam diretamente o desenvolvimento da primeira infância, o que estamos experimentando juntos é a otimização de partes destes esforços materializados num território específico. Além desta iniciativa estamos conduzindo um projeto em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, o Global Environment Facility, o INCITI, a Secretarias de Planejamento Urbano e a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Prefeitura, para realizar uma intervenção às margens do rio Capibaribe que reúna as propostas de urbanidade colocadas pelo projeto Parque Capibaribe e um conjunto de propostas inovadoras de como abordar desafios antigos com novas soluções.

  1. A nível educacional e de saúde pública, quais as políticas públicas que pretendem desenvolver para o novo Recife, tendo em vista que esses são atuais fatores críticos na capital?

Educação e Saúde são temas centrais em qualquer visão de longo prazo de qualquer cidade. Da forma como estes temas são tratados no Brasil já existem um conjunto de políticas públicas de longo prazo devidamente estabelecidas e alguns arcabouços a serem seguidos. Um excelente exemplo é a forma como o Sistema Único de Saúde foi idealizado e é implementado sempre considerando a perspectiva da transformação de longo prazo. A estratégia da cidade aponta linhas gerais de atuação e tenta identificar prioridades e marcos a serem vencidos no longo prazo. Além disso, busca propor um olhar transdisciplinar na forma como se faz política pública. Desenvolver e implementar estas políticas é papel dos gestores devidamente eleitos ou apontados para tanto. Nosso papel é contribuir, propor e cobrar. Atualmente no Recife há um conjunto de iniciativas na rede municipal de educação que são compatíveis não apenas com o tipo de escola que teremos no futuro quanto com o tipo de cidadão que precisamos formar. O mesmo vale para o setor de Saúde. Apesar de dificuldades conhecidas, há de se reconhecer iniciativas que estão muito sintonizadas com o futuro. Destaque para o Hospital da Mulher, um tipo de iniciativa que entende os desafios contemporâneos mas ajusta a solução da política pública à perspectiva de mudanças para o futuro. O Hospital da Mulher é um espaço de antecipação de futuro. 

  1. Como se pretende tratar problemas presentes nas grandes cidades de primeiro mundo, como poluição, enchentes e loteamento populares, por exemplo?

A primeira parte da pergunta (poluição e enchentes) está diretamente ligada ao nosso principal desafio de ordem ambiental e climática, nossa relação com as águas do Recife. O plano coloca estes temas na perspectiva da transdisciplinaridade e aponta a importância de tratar do tema de forma urgente e eficaz. Recife é uma cidade extremamente expostas aos efeitos do aquecimento global e à provável elevação do nível do mar. O caminho passa por unir iniciativas como a implementação do plano diretor de pavimentação e drenagem, naturalização dos corpos d’água e a urbanização de suas margens com soluções inovadoras como jardins filtrantes e a criação de áreas de retenção e retardo do escoamento de água em momentos de grande volume de chuvas. É importante também uma mudança de cultura e comportamento da população em respeito às infraestruturas hídricas de nossa cidade. Será necessário também ampliar a capacidade de previsão de eventos extremos e a proteção de áreas de risco. E, fundamental, precisamos reinventar nossa relação com nossos rios.

Com relação à segunda parte da pergunta, sobre loteamentos populares, estou interpretando que a tua pergunta se refere a áreas de moradia em territórios não urbanizados e sem regularização fundiária. Neste caso, a estratégia que nos parece mais eficaz é a manutenção da moradia do cidadão que atualmente ocupa estas áreas dentro do território em que sua vida é viável. A urbanização e regularização destas áreas entrega enorme valor social, urbanístico e econômico à cidade. O reconhecimento do direito destas famílias, a urbanização destes territórios e, quando necessário, a remoção para áreas muito próximas deve ser o caminho a ser perseguido. Mantendo sempre como princípio a viabilidade da ocupação da cidade de forma múltipla por diferentes níveis de renda em seus mais diversos territórios. A síntese estratégica REUNIR contempla a utilização de uma política de habitação que permita a redução de desigualdades e a integração de territórios ocupados por diferentes níveis de renda.

  1. O projeto visa promover ações relacionadas ao meio cultural e esportivo? Quais?

Na perspectiva de um plano de longo prazo, políticas de cultura constituem o elo que costura todas as estratégias da cidade. O que o plano visa promover é o uso destas políticas de cultura como vetor de transformação social e construção de unidade.

  1. Como funcionam as estratégias desenvolvidas pela ARIES em parceria com a população local e o poder público? Fala um pouco sobre o papel de cada nesse processo.

A população se articula e se organiza de formas diversas. Nossa cidade reúne um grande número de movimentos, iniciativas, associações, organizações e indivíduos que se manifestam e militam em prol de uma cidade melhor. A ARIES não substitui essas iniciativas. O conceito é que a agência se dedique a manter o debate vivo e bem informado de modo a manter o foco nas questões de longo prazo. Para o sucesso do trabalho que a ARIES desenvolve é fundamental que cada iniciativa cidadã se fortaleça ainda mais e cumpra ainda melhor seu papel. O poder público se articula com a cidade também de múltiplas formas e isso não se altera com o nosso trabalho, contudo, buscamos construir juntos uma bússola que oriente a navegação rumo ao futuro. Caberá aos representantes eleitos da nossa cidade aderir mais ou menos às proposições da estratégia do futuro que estamos construindo juntos. Até o momento temos contado com o compromisso, o trabalho e a coragem do poder público municipal em construir uma proposta tão ousada em conjunto com a sociedade. Esperamos sustentar este mesmo nível de colaboração hoje e sempre.

  1. Como se elabora um plano estratégico de longo prazo, deste modo? Quais as maiores dificuldades e seus pilares principais para um bom funcionamento?

Dá um trabalho arretado e só acontece com uma mistura de metodologia e engajamento cidadão. De forma resumida, o que fizemos foi iniciar construindo uma base ampla de pesquisa de referências e saberes sobre cidades e sobre a nossa cidade. Nesta etapa reunimos estudos e planos que nos precederam, buscamos fazer uma análise retrospectiva de como a cidade evoluiu ao longo dos últimos 20 anos em comparação com o que se esperava ou desejava há vinte anos. Levantamos todos os indicadores que pudessem nos dar um parâmetro realista da situação da cidade hoje. A todo este material juntamos os saberes que emergiram durante a primeira rodada de participação cidadã com mais de três mil recifenses. Construímos então cenários possíveis e prováveis para a nossa cidade e lançamos visões que refletissem as aspirações, os anseios e as necessidade do Recife. A partir destas primeiras visões demos início a uma segunda rodada de participação e elaboração técnica onde traduzimos estas visões em atributos estratégicos, temas de relevância para a nossa cidade. Estudamos as interseções entre estes atributos para mapear diretrizes que servissem de base para uma nova forma de fazer cidade. Após esta etapa rodamos mais um ciclo de elaboração técnica para apresentar à cidade o primeiro esboço de estratégia sobre o qual estamos agora debruçados em debates públicos para que o recifense possa mais uma vez contribuir, criticar, validar, questionar, corrigir e adequar as proposições ao mais próximo possível de um ideal de cidade que seja viável. É um trabalho complexo e de grande volume e, como tal, repleto de grandes dificuldades, mas o maior desafio foi manter sempre o plano fiel ao processo de participação, engajar pessoas e navegar os temas contraditórios de uma grande cidade. Os pilares para o bom funcionamento de uma estratégia de cidade é a manutenção da participação cidadã e o diálogo maduro e em alto nível com os diferentes atores políticos envolvidos no processo de fazer cidade.

  1. Como desenvolver uma cidade tecnológica, sem deixar de lado suas raízes e tradições culturais?

Não há contradição entre as duas coisas. Tecnologia é, por definição, apenas um conjunto de meios. Nunca será o elemento central que nos define. Recife é uma cidade que já nasceu globalmente conectada e cujas tradições foram construídas a partir de um conjunto vasto de influências. Ter uma estratégia de cidade envolve, dentre outras coisas, a busca pela celebração da nossa identidade, das nossas raízes e das nossas tradições. Envolve amplificar aquilo que temos e somos de melhor de forma a contribuir ao diálogo global. É buscar um lugar na rede de cidades que ocupam o imaginário das pessoas e ter a capacidade de compartilhar nossa identidade de forma a apaixonar quem é daqui e quem opta por viver aqui. Tecnologia só nos habilita a fazer isso de novas formas e com novos alcances.  

  1. Por quais motivos você acredita que o Recife tenha potencial para ser eleita a cidade do futuro?

Tenho uma fé inabalável na nossa gente. Com um pouco mais de empatia em nossa sociedade conseguiremos libertar todo o potencial transformador dos recifenses.

  1. Para você, como seria o Recife ideal daqui há 20 anos?

Menos desigual. Acima de tudo, menos desigual. Mas também uma cidade mais fluida e 100% saneada. Que o direito de todos à cidade seja plenamente respeitado e que o cumprimento de nossos deveres cidadãos seja parte fundamental da nossa cultura. Gostaria de ver nossa cidade dotada de uma rede transdisciplinar de suporte ao desenvolvimento pleno da primeira infância, com acesso universal a educação e saúde de qualidade. Uma cidade mais caminhável,  com sua mobilidade desenhada orientada pelos modos de deslocamento ativo, dotada de uma rede eficiente, segura e ágil de transporte público coletivo. Uma cidade parque, onde os espaços públicos sejam um convite ao convívio cidadão. Uma cidade que conheça, entenda, respeite e celebre seu patrimônio histórico e que se mantenha firme no compromisso com gerações futuras.  Uma cidade ambientalmente resiliente, tomada por áreas verdes e que consiga colocar nossas águas a nosso favor. Mas todas estas transformações precisam se guiar pelo propósito de reduzir desigualdades. O que aprendi andando por todo o Recife e conversando com um número enorme de recifenses é que somos de fato uma cidade ainda repleta de jovens em busca de oportunidades e que esses jovens sem acesso a oportunidades são majoritariamente negros. Não por acaso, é essa juventude negra que mais sofre com a mazela da violência urbana. Aprendi também que somos uma cidade que na sua base já é liderada por mulheres, mas que essa liderança não está refletida na mesma proporção nas estruturas políticas e sociais de condução e construção da cidade. Não por acaso são justamente as mulheres que mais sofrem com os desafios da cidade. A cidade que quero no presente materializa essa liderança feminina e busca proativamente salvar nossa juventude negra. Essa é a cidade que eu acredito que vamos construir.

Author: Eduarda Andrade

Compartilhe este post